Foi em 20 de janeiro de 1953, com história ambientada no sertão nordestino e que tinha como pano de fundo o fenômeno social do cangaço, que ganhava vida a obra que se tornaria uma das mais importantes e preciosas da arte brasileira. O filme O Cangaceiro, nona produção da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, de São Bernardo, e que a consagrou para sempre, completa amanhã 65 anos e segue como marco na história do cinema nacional.
Com direção de Lima Barreto (1906-1982), a obra consagrou o Brasil na sétima arte, tanto que foi distribuída em cerca de 80 países e faturou como melhor filme de aventura no Festival de Cannes (França), em disputa com outros 72 longas de mais de 20 países. O Cangaceiro teve ainda menção especial para música. A produção conta com diálogos escritos por Rachel de Queiroz (1910-2003), primeira mulher eleita à Academia Brasileira de Letras, e desenhos de produção, cenários e figurinos assinados pelo artista plástico Carybé (1911-1997).
A obra, com ares de ‘faroeste brasileiro’ – e feita em tempos em que ainda havia integrantes vivos da turma de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião –, conta do bando de Galdino, vivido por Milton Ribeiro (1921-1972), que saqueia cidade e sequestra a professora Olívia, papel de Marisa Prado (1930-1982). Mas Teodoro, interpretado por Alberto Ruschel (1918-1996), amigo do protagonista e lugar-tenente do bando, é contra a ação e foge com a moça. Só no Brasil, no ano de estreia, o filme foi visto por mais de 10 milhões de pessoas. É, até hoje, como explica Rodrigo Pereira no livro 100 Melhores Filmes Brasileiros, um dos títulos nacionais de maior bilheteria.
Para Antonio Leão S. Neto, pesquisador de cinema e autor de dez livros, O Cangaceiro foi um divisor de águas na história do sétima arte brasileira. “O filme mostrou ao mundo que o Brasil fazia cinema. A trilha sonora Muié Rendeira correu os quatro cantos do planeta.” Vale lembrar que, segundo o especialista, naquele período o País vivia de filmes musicais, produzidos pelas companhias Cinédia e Atlântida e que, dificilmente, ultrapassavam as fronteiras da América Latina. “ O Brasil passava despercebido, primeiro pela precariedade das produções, limitadas à falta de dinheiro, embora criatividade não faltasse, e depois pela falta de um distribuidor internacional que se interessasse pelos filmes”, explica.
O longa, cuja distribuição internacional foi vendida para a Columbia Pictures, teve partes filmadas em São Bernardo, como escreveu o jornalista e historiador do Diário Ademir Medici, em 2014, quando lembrou que o ex-prefeito da cidade Geraldo Faria Rodrigues (1930- 2005), que trabalhou na Vera Cruz, recordou cenas que foram registradas onde hoje é a Rua Senador Vergueiro.
Mas boa parte do longa foi rodada mesmo em outro local, em Vargem Grande do Sul, Interior de São Paulo. Foi lá que o cenógrafo italiano radicado em São Bernardo Pierino Massenzi (1925-2009), que viveu os tempos de ouro da Vera Cruz, trabalhou duro para a obra. Em 2006, em entrevista ao Diário, disse que, para O Cangaceiro, teve de reconstruir “cacto por cacto, pedaço por pedaço”.
Quem viu de perto a vida de Vargem Grande do Sul mudar por conta das filmagens do filme foi Márcia Ribeiro Iared, hoje diretora de Cultura do município. À época da rodagem da obra ela tinha 5 anos. Lembra-se de um dia se deparar com o ‘bando dos cangaceiros’ no meio da cidade, em plena filmagem. “Tomei um susto, me escondi até”, conta. “Houve uma revolução no local. Era o maior elenco com o qual o cinema nacional já tinha trabalhado. Os atores conviviam com as pessoas da cidade. Isso provocou agito.”
Foi também em O Cangaceiro que a história da música brasileira mudou para sempre, quando o compositor Adoniran Barbosa (1910-1982), que encarnou um cangaceiro na obra, conheceu o grupo Demônios da Garoa, convidado para apresentar a faixa Muié Rendeira, cantada na ocasião pela atriz Vanja Orico. Roberto Barbosa, o Canhotinho, que entrou no Demônios em 1962, conta que nem seus ex-companheiros, que participaram do filme, sabiam que a obra teria tanto sucesso. Apesar disso, para o músico, o que projetou de fato o nome do grupo foi a parceria feita dali em diante com Adoniran. “De qualquer forma foi importante para o Demônios ter estado lá.”
Em 2003, quando o filme completou 50 anos, Vanja Orico (1931-2015), que interpretou Maria Clódia, mulher de Galdino, disse ao Diário que o diretor não decidia quem cantaria Sodade e que decidiram por ele. “Estávamos hospedadas na casa do prefeito de Vargem Grande e brigamos por causa da música. No dia seguinte estávamos com olho roxo. Mas o clima foi de amizade nos nove meses de filmagem.”
Para Antonio Leão S. Neto, é possível dizer que o longa é a produção de mais destaque da Vera Cruz. “Há quem discorde, pois existem outros filmes tão bons quanto, como Sinhá Moça e Uma Pulga na Balança, ou mesmo Tico-Tico no Fubá, mas, pelo sucesso internacional e os prêmios que ganhou, O Cangaceiro é, sim, o mais importante.”
Exposição celebra obra em Vargem Grande do Sul
A cidade de Vargem Grande do Sul, no Interior de São Paulo, não esquece de quando a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, de São Bernardo, fincou sua parafernália lá para rodar o longa-metragem O Cangaceiro (1953).
E para contar as histórias que o local viveu e celebrar o triunfo mundial do filme, a Casa de Cultura da cidade (Rua Major Correa, 505) convida para a mostra gratuita – sem data de encerramento – O Cangaceiro: de Vargem para o Mundo.
O público pode ver objetos que remetem ao filme. Fotos de bastidores, maquetes, gravuras, roupas, cenários e depoimentos fazem parte. Entre as peças, Márcia Ribeiro Iared, diretora de Cultura da cidade, destaca as calças de montagem usadas pelo ator Milton Ribeiro.
São Bernardo guarda várias peças usadas no longa
Objetos usados nos filmes da Companhia Vera Cruz foram encontrados em 2017, pelo Paço de São Bernardo, abandonados e mofando, no espaço que um dia produziu grandes obras. Entre eles, alguns usados em O Cangaceiro (1953). O material foi achado após o contrato com a Telem S.A, que detinha a gestão do Complexo Vera Cruz por 30 anos e não cumpriu acordo, ser cancelado com a Prefeitura. O Paço informa que está em conversa com a Cinemateca para a preservação do acervo da Vera Cruz.
Clássico brasileiro pode ser visto em DVD e on-line
Quem quiser assistir à obra O Cangaceiro (1953), pode achar versão em DVD duplo lançada em 2011 e distribuido pela Versátil. É possível ainda emprestar uma cópia no Centro Áudio Visual de São Bernardo ou ver on-line, no site do Banco de Conteúdos Culturais (www.bcc.org.br), resultado de trabalho da Cinemateca Brasileira em parceria com o Centro Técnico Audiovisual.