Após passar por violência doméstica e câncer, mulher fica 5 anos em abrigo sigiloso para vítimas e cursa psicologia em SP

Aos 22 anos, Claudia Cesar Costa foi apresentada pela madrinha a um rapaz com quem se casaria dois meses depois em Diadema, no ABC Paulista. A lua de mel durou um ano e meio até ela receber o primeiro tapa no rosto. Em 10 anos de união, entre 1997 e 2007, ela conta que foi espancada, teve o rosto cortado com faca, obrigada a vender drogas e ficou dois meses sem comer enquanto fazia quimioterapia para curar um câncer de mama.

Em momento de desespero após ouvir o marido dizer que a mataria, ela incendiou o barraco onde morava e se trancou com o ex-marido dentro. Após ser socorrida, prestou queixa à polícia e levada para para um dos dois imóveis do Programa Casa Abrigo, do Consórcio Intermunicipal do Grande ABC. Claudia ficou cinco anos no endereço, que é sigiloso para garantir a segurança das mulheres vítimas de violência.

Com a saída de três prefeituras do consórcio, o Programa Casa Abrigo correu risco de acabar e, em abril deste ano, teve o orçamento anual reduzido de R$ 1,3 milhão para R$ 1 milhão (leia mais abaixo).

Nos 15 anos de funcionamento do Programa Casa Abrigo, 1.150 mulheres receberam assistência após sofrerem violência doméstica e 2 mil crianças também passaram pelo atendimento, segundo o consórcio, entre janeiro de 2004 a fevereiro de 2019.

O que Claudia viria a saber no futuro é que ela era uma vítima potencial de feminicídio, mas escapou do ciclo da violência. Em São Paulo, o número de casos de assassinatos de mulheres aumentou 76% no 1º trimestre de 2019, de acordo com levantamento feito pelo G1 e pela GloboNews. Nos primeiros três meses do ano, 37 mulheres foram vítimas de feminicídio. Em 2018, foram 21.

Hoje com 43 anos, ela considera o atendimento que recebeu nos cinco anos no Programa Casa Abrigo como essenciais para sua recuperação física e psicológica. “As educadoras do Casa Abrigo fizeram o papel da minha família. Quando fui para o abrigo, pensei: ‘Eu vou mudar de vida e vai ser aqui. Não queria mais aquela vida. Eu não tinha estudo, não sabia o que me falaram'”.

No período em que recebeu assistência, ela disse ter abraçado todas as oportunidades que lhe foram oferecidas para viver fora do ciclo da violência doméstica. “Na Casa Abrigo eu estudei, fiz curso de hotelaria, de gestão empresarial. Fiz o EJA [Educação de Jovens e Adultos], voltei a fazer o primário e fazendo a quimioterapia. Fiz o ensino médio pelo EJA também”, disse Claudia.

Emocionada, ela lembra do momento em que descobriu ter conseguido uma vaga na faculdade. “A educadora falou para a gente se inscrever no Enem e eu me inscrevi. Aí, no dia da prova, eu fiz o as duas etapas do Enem mesmo sem ter como estudar. Eu não tinha os livros. As educadoras pegavam os livros delas e me emprestavam, o motorista trazia os livros que tinha e todo dia eles me cobravam a leitura.”

Como as duas unidades do Programa Casa Abrigo ficam em endereços sigilosos, nenhuma mulher assistida pode acessar a internet. “Então, as educadoras me faziam estudar da meia-noite até 1h. Quando fiz a prova e veio o resultado, elas começaram a gritar quando viram que eu tinha passado.”

Por conta das agressões sofridas ao longo dos 10 anos de casamento violento, Claudia ficou com sequelas no corpo. As assistentes sociais conseguiram que ela recebesse o Benefício de Prestação Continuada (BPC) da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), um salário mínimo, segundo Claudia.

Por conta disso, ela não teve direito ao Programa Universidade para Todos (ProUni), do governo federal. “Eu dizia que iria fazer faculdade. O moço me avisou que eu já tinha entrado na faculdade só com a nota do Enem. Sabe preso quando sai em liberdade? Eu gritava na porta da faculdade: ‘eu passei, eu passei, era uma alegria tão grande. Para mim, passar na faculdade era fora da minha realidade. Então, eu fiquei eufórica. Eu chorava. Um dia me viram chorar de tristeza e depois me viram chorar de alegria.”

O câncer

Antes de chegar à sala de aula, Claudia precisou encontrar forças que nem ela sabe de onde tirou para superar a violência do ex-companheiro e o tratamento de radioterapia e quimioterapia contra o câncer. O primeiro tapa que recebeu do ex-marido foi em 1998; depois de quatro anos, ele riscou o rosto dela com uma faca e passou a ameaçá-la de morte com um revólver.

“Ele usava drogas e estava na casa do vizinho. De lá ele achou que tinha um homem em casa e veio procurar esse homem, que não existia. Em outro momento, ele quebrou a testa de um homem com uma pedrada, quando chegamos em casa ele riscou meu rosto com uma faca”, disse.

Claudia lembra que o ex-marido era muito violento e agia dessa maneira cada vez mais impetuosamente. Além da tortura física, o ex-marido a agredia psicologicamente com tanta intensidade que ela passou a acreditar no que ele dizia. “Eu acreditava que aquela vida era a que eu tinha. Não tinha perspectiva de vida, não tinha nada. Meu ex-marido vivia me chamando de burra. Eu apenas acreditei por longos anos que eu era burra.”

Ela descobriu o câncer de mama há 12 anos, fazendo o autoexame. A pressa com o tratamento era latente, pois o nódulo já tinha sete centímetros. “Descobri o nódulo no fim de 2005. Como era fim de ano, tive de marcar consulta no começo de 2006. Falei para a ginecologista que tinha achado um nódulo e ele já estava um pouco grande. Da primeira consulta com a ginecologista até chegar ao hospital Mário Covas demorou um ano. Cada exame demorava cerca de 3 meses. Quando fui chegar ao especialista, o oncologista, já era outubro de 2006.”

Claudia disse que sempre teve esperança de que o ex-marido melhorasse o comportamento e, principalmente, deixasse de lado as agressões físicas e psicológicas. “Meu ex-marido me proibiu de estudar, de trabalhar, teve uma época que ele me trancava em casa. Quando eu falei para ele que eu estava com câncer de mama, na minha inocência, eu achava que ele iria melhorar, mas piorou. O homem que era violento ficou ainda mais violento.”

Claudia não realizou a cirurgia por causa de mais um efeito da violência e tortura sofrida por ela dentro de casa. “Estava com anemia. O oncologista disse que eu ia fazer radioterapia, quimioterapia e um monte de exame. Lembro que eu perguntei quanto tempo eu tenho de vida e o médico disse que 50% estava nas minhas mãos e os outros 50% estavam na mão de Deus.”

Ela fez todo o tratamento escondida do ex-marido. “Ele começou a me ver saindo de casa para ir ao hospital, mas ele achava que eu estava com outro homem ao invés de estar me tratando. Meu tratamento estava previsto para durar um ano, mas não foi isso que aconteceu.”

Claudia disse que em julho de 2007 já tinha feito os primeiros ciclos de quimioterapia. Foram oito meses. “Só que eu já estava muito desgastada para a quimioterapia, nesse período ele disse que não iria comprar mais nada para comer em casa, então eu fiquei dois meses sem comer nada, nada, nada. Teve um período que uma vizinha me dava comida e falava para eu não lavar a louça para que meu ex-marido não desconfiasse. Ele me dava tapa, soco.”

Coragem para denunciar

Em junho de 2007, Claudia completou dez anos de casamento com a violência. E, e em julho do mesmo, ela resolveu dar um basta. “Eu ouvi ele falar para um vizinho que iria me matar. A gente morava num barraco, aí no dia seguinte eu resolvi botar fogo em tudo. Lembro que coloquei álcool nas cortinas e risquei um fósforo. Fiquei em pé na porta e tranquei por dentro e falei: agora você vai ver quem mata quem.”

Claudia lembra que só não morreu porque a fumaça chamou a atenção de quem morava no bairro. “Por Deus minhas vizinhas foram conversar na frente de casa e começaram a tentar abrir a casa. Teve uma hora e eu estava em pé na porta, o fogo passou por trás de mim, atingiu a porta, mas não me queimou. Eu chorava descontroladamente e conseguiram me salvar depois de tanto molhar a madeira.”

Ela lembra que no dia seguinte avisou ao então marido que iria denunciá-lo à polícia. “Fui até a delegacia e fiz a denúncia. Os investigadores foram até a minha casa e acharam uma arma no armário. Eu comecei a prender meu marido neste dia. Peguei um saco com pertences pessoais, meu pote de remédios e fui embora.”

O ex-marido foi preso em 2012 após ser condenado pela Leia Maria da Penha. “Estou livre! Agora eu posso ser quem eu sou, quem eu quero ser: a Claudia, que estava morta! Eu renasci.”

12% das vítimas atendidas voltam a viver com o agressor

Segundo o levantamento feito pelo Consórcio Intermunicipal do Grande ABC, 38% das mulheres vítimas reportaram violência psicológica e 37% relataram violência física. Do total, 57% delas precisaram passar por atendimento de saúde por conta da gravidade das agressões.

Ainda de acordo com o Consórcio, 41,5% das mulheres têm entre 30 e 39 anos e 42% estão na faixa etária de 19 a 29 anos.

Entre as vítimas assistidas pelo programa, 41% tinham ensino médio e 36% tinham até o fundamental 2.

O levantamento também apontou que 49% das vítimas eram brancas e 36,5% eram pardas, de acordo com definição preconizada pelo IBGE.

A renda familiar de 1 a 2 salários mínimos foi registrada em 35% dos casos, até 1 salário mínimo em 34% dos casos.

Quando saem do atendimento do programa, 38% ficam com familiares, 31,5% conquistam a independência, mas 12% voltam a morar com o autor da violência.

Precarização do Programa Casa Abrigo

Desde 2004 as duas casas abrigo que atendem as mulheres vítimas de violência doméstica funcionam com orçamento compartilhado entre as sete prefeituras do ABC (Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, Diadema, Mauá, Ribeirão Pires, Rio Grande da Serra).

No ano passado, uma crise política no Consórcio provocou a saída das prefeituras de Diadema, de São Caetano do Sul e Rio Grande da Serra, a entidade correu risco de deixar de existir durante a gestão do ex-presidente Orlando Morando. Com a eleição do atual presidente, Paulinho Serra, a entidade ganhou sobrevida e, por consequência, o Programa Casa Abrigo também.

A garantia da continuidade do programa só foi possível com a reestruturação do orçamento anual, que era de R$ 1,3 milhão e passou a R$ 1 milhão desde março. Edgar Brandão, secretário executivo do Consórcio Intermunicipal do Grande ABC, garantiu a continuidade do funcionamento do Programa Casa Abrigo.

“O atual orçamento, a licitação, foi preparada em 2012 e 2013, era outra realidade. Como vamos fazer uma nova licitação, mas não vamos cortar o programa, mas vamos otimizar o funcionamento. Por exemplo, temos uma van fixa para transporte, então, vamos alterar isso para uso de aplicativos”, disse ele.

Segundo Brandão, o valor da planilha de custo do programa será menor e com o mesmo atendimento e qualidade. “A Casa Abrigo é o carro-chefe do Consórcio. A violência contra a mulher está aumentando e jamais haveria corte desse tipo de atendimento. A gente foi ao Ministério da Família para pedir verba para abrir uma nova casa no ABC.”

Fiscalização

A luz de alerta acendeu diante dos olhos de entidades representativas dos direitos das mulheres no Grande ABC.

“As duas unidades atendem 40 vagas, incluindo mulheres e filhos. A gestão delas é feita pelo Consórcio mediante repasse das prefeituras. Desde o começo acompanhamos a implementação do programa, mas desde o ano passado ficamos em alerta com o risco de desmonte do consórcio e consequentemente a política do programa Casa Abrigo poderia ruir”, disse Cristina Pechtoll, ativista do Movimento de Mulheres e da Frente Regional de Enfrentamento da Violência Contra a Mulher no ABC.

Ela teme que a redução do orçamento do programa possa refletir no atendimento destinado à mulher. “Lutamos pela continuidade com qualidade. Esperamos que a redução do orçamento não precarize ao atendimento. Isso nos preocupa muito, principalmente para não haver redução de vagas. O corte orçamentário é de 1/3, que chega a R$ 500 mil por ano”, afirmou Cristina.

“Fazemos uma avaliação sistêmica, pois está reduzida a política de divulgação de serviços assistenciais, como os Centros de Referência de Assistência Social (Creas). Se a população não sabe a da existência desses serviços, a demanda acaba diminuindo, mas não por falta de necessidade, mas por falta de informação. O perigo é que, com isso, a Casa Abrigo pode ter vaga ociosa, o que não reflete a realidade das mulheres que estão em risco de morte”, disse Cristina.

Para Dulce Xavier, militante do movimento feminista do Grande ABC e ex-secretária adjunta de políticas para mulheres na Prefeitura de São Paulo, “as casas abrigos são muito importantes porque é o local que abriga a mulher que está em risco de morte. Queremos a garantia de que esse programa não deixe de funcionar.”

Segundo ela, houve uma redução de abrigamento. “O que o movimento de mulheres tem percebido é que há uma mudança no atendimento nos municípios. Os centros de referência e Creas, que encaminham as mulheres para os abrigos, estão encaminhando menos mulheres, a divulgação destes serviços diminuiu, enfim há uma incoerência aí”, disse.

Ela está preocupada com o crescente número de casos de violência contra a mulher e de feminicídios. “No momento em que em 2018 cresceu o número de violência contra a mulher e em 2019 a gente não para de ver os casos de feminicídio, a gente não pode imaginar que o programa como esse seja diminuído, na verdade, ele precisa ser aumentado. É preciso mais divulgação de espaços como esse. A mulher precisa se sentir segura para o tipo de apoio que ela irá receber para o rompimento da violência.”

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