Dia do Trabalho: A realidade dos trabalhadores em Heliópolis

O Dia do Trabalhador reforça a luta por dignidade, melhores condições de trabalho e o direito a uma vida com mais qualidade.

Da ponte para cá, o cenário do trabalhador brasileiro é outro. O relógio desperta quando o céu ainda veste escuridão, e mesmo após o entardecer, a jornada não conhece fim. Neste 1º de maio, Dia do Trabalhador, a UNAS compartilha a história de Valderice, Maria Quitéria e Justino — três trabalhadores da favela de Heliópolis que transformaram as ruas da quebrada com o exercício digno de suas profissões.

Pouco antes das sete da manhã, Valderice Maria da Silva, 60 anos, já está nas ruas, puxando seu carrinho em busca de recicláveis. A coleta começa na rua Vicente Gaspar e segue até as imediações da João Lanhoso. O percurso se repete ao menos duas vezes por dia, em busca de latinhas, embalagens plásticas e tudo o que puder ser vendido. A rotina é dura, e o relógio não dita o retorno para casa — há hora para sair, mas nunca para voltar.

Conhecida por todos como Dona Val, ela começou a catar recicláveis em 2020, após perder o emprego pouco antes da pandemia de COVID-19. “Trabalhava numa empresa na Avenida Paulista, mas a firma perdeu o contrato. Fui visitar meus pais em Pernambuco em 2019, e quando voltei, já era pandemia. Entreguei currículo, mas estava tudo fechado. Para não depender de ninguém, fui para a rua catar latinha”, lembra.

Com formação até a 4ª série, Dona Val já percorreu muitos caminhos: foi cobradora de ônibus, babá, merendeira no CEU Meninos e empacotadora na fábrica da Yoki, na cidade de São Bernardo do Campo. Vinda do município Canhotinho, em Pernambuco, chegou à favela ainda nos anos 1980, quando começava a construir sua história, enfrentando a vida como mãe solo de três filhos.

Apesar dos desafios, Dona Val encontra na reciclagem não apenas o sustento, mas também um propósito. Sente que contribui para o meio ambiente e mantém o corpo e a mente ativos. Ainda assim, reforça: é urgente garantir mais direitos aos trabalhadores, melhores salários, condições dignas de trabalho e a chance real de bem-viver.

Valderice Maria, 60 anos é catadora de materiais recicláveis em Heliópolis | Foto: Isabela do Carmo

“O Dia do Trabalhador é muito importante pra gente, que luta pelo pão de cada dia. Me sinto feliz e orgulhosa de mim mesma. Criei meus três filhos sozinha com o suor do meu trabalho. Só acho que os governantes podiam olhar mais para nós. Cuidar da gente, cuidar do meio ambiente, e dar mais oportunidade de emprego. A gente que trabalha com reciclagem, a gente que vende o nosso material, a gente precisa ser visto. E não só nós, todos os trabalhadores merecem dignidade.”

Vinda de Alagoas, Maria Quitéria dos Santos, 52 anos, escolheu Heliópolis como lar há duas décadas. Hoje, transforma uma das esquinas da Estrada das Lágrimas em ponto de encontro, aroma e afeto, vendendo bolos, salgados e cafés que aquecem as manhãs de quem por ali passa.

Foi nesse ofício simples e cheio de significado que encontrou não apenas a chance de melhorar sua renda, mas algo ainda mais precioso: autonomia e reconhecimento. Antes, trabalhava na área da limpeza, ganhando apenas R$ 1.500 por mês — muito esforço para um retorno que mal cobria o básico, segundo Maria. 

Maria Quitéria, 52 anos é vendedora de bolos em Heliópolis | Foto: Isabela do Carmo

“Eu trabalhava numa firma, na limpeza. Lá mesmo já vendia umas coisinhas. As meninas sempre me diziam que eu merecia mais. Falavam que aquele salário era pouco, que eu tinha talento e podia fazer algo melhor. Acreditaram em mim antes mesmo que eu acreditasse. Então resolvi tentar e aqui estou”, disse. Em complemento, afirma: “Peguei minhas coisas, vim com dois bolinhos, empurrando um carrinho de milho, no começo. Já faz quatro anos que estou aqui.” 

A jornada de Maria Quitéria começa cedo, ainda na madrugada. Às 3h30, ela já está na cozinha preparando os cafés, bolos e salgados que leva para a rua. Às 5h30, está de pé em seu ponto na Estrada das Lágrimas. Só retorna para casa às 16h30, mas o dia não termina aí. Ainda precisa preparar os alimentos do dia seguinte, e só consegue ir para a cama por volta da meia-noite.

A rotina é exaustiva, e o corpo sente. As longas horas de pé, o peso das mercadorias, a incerteza do quanto vai vender no dia, a ausência de direitos básicos como descanso remunerado ou auxílio em caso de doença. Apesar disso, Maria se mantém firme. “Antes, meu salário não dava pra nada, ainda mais com tudo tão caro hoje em dia. Aqui, pelo menos, eu consigo respirar. É muita luta, é batalha… mas é minha.” 

Trabalhar por conta própria trouxe autonomia, mas também ampliou os desafios: não há folga garantida, nem rede de apoio institucional. O que sustenta Maria é a força da necessidade, a habilidade que desenvolveu ao longo da vida e a vontade de seguir em frente.

Logo na esquina da Rua Santa Edwiges, está a quitanda de Seu Justino. De chuveiro a paçoca, o pequeno mercadinho oferece de tudo um pouco para a vizinhança. Aos 60 anos, ele carrega uma história entrelaçada à própria formação de Heliópolis, onde chegou em 1979, vindo da Paraíba, em busca de oportunidades.

Justino José, 60 anos é comerciante em Heliópolis | Foto: Isabela do Carmo

“Cheguei aqui na época dos alojamentos provisórios. Consegui um emprego de motorista numa empresa e trabalhei por cinco anos. Depois disso, resolvi abrir um botequim, e desde então estou nessa vida.”

Seu primeiro ponto comercial foi na Rua Almirante Nunes. Com o tempo, acompanhando o crescimento da favela, mudou-se para onde está até hoje. “Comecei lá na Almirante Nunes. A comunidade foi crescendo, crescendo… e eu fui crescendo junto com ela.”

Testemunha da migração nordestina que ajudou a erguer Heliópolis, Justino reconhece o peso — e o valor — da luta diária do trabalhador. “O Dia do Trabalhador é muito importante pra gente. A gente luta pra sobreviver, pra cuidar da família. Tem que lutar. O trabalhador é isso. A maioria do pessoal daqui é do Norte, do Nordeste. Gente lutadora, que veio pra batalhar.”

A rotina é exigente, e a estabilidade é sempre conquistada com muito esforço. Seu Justino, como tantos outros trabalhadores informais, enfrenta os desafios de manter um negócio em meio à instabilidade econômica, à ausência de apoio público e à sobrecarga física. Ainda assim, persiste — não por escolha idealizada, mas por necessidade e resistência.

Rolar para cima